Quem terá razão nesse universo tão repleto de pontos de vista? Se eu não sou capaz de acessar em você aquilo que lhe compõe o mundo interno das percepções, como poderei apreender de você aquilo que sua alma sentiu quando viveu aquele fato?
Diante das discórdias sem nome e das desavenças sem destinação concreta, o ego luta para fazer valer a sua razão e suprime a alma em sua perseguição pelo sentido. Até porque, parece que apenas faz sentido o fato de que me fizeram sofrer, ainda que esse fato seja real tão somente para mim mesmo, que me justifico e lhe crucifico como meu algoz ou mentor de meu abandono mais soez.
A alma debatida se abate e esperneia. Fica em segundo plano e se perde das coisas mais poderosas que o ‘ter razão’, sobretudo porque está distanciada da visão final que todas as coisas podem assumir quando lhes damos o caráter transformacional.
O peso de assumir o equívoco é agigantado pela imagem inédita que teimamos manter sobre quem somos. Isso não basta, é claro. É preciso que eu faça você se sentir responsável pela minha dor e pelo meu sofrimento. É necessário que eu agigante em você o anzol das suas culpas para que eu me exima das minhas. Eu, de fato, nenhuma culpa tenho! Foi o mundo que se fez responsável por todas as quedas e por todas as pedras que encontrei em minha estrada. Foi você e nunca eu!
Eu não tenho as mãos maculadas pelo dolo de falhar, pois em minha fala, que oculta a sombra tardia e escorregadiça, encontro sempre mil lastros onde me justificar e me desencontro de minhas verdades mais cruéis e pertinentes, ao tempo em que me inocento.
Se sou inocente, então, por que sofro? Por que sou enganado e perco meus bens? Por que sou deixado e esquecido? Por que me caluniam, se eu sou a imagem da justiça e da lealdade? E, sendo tudo isso, por que sinto necessidade de prová-lo com discursos eloqüentes e soberbos? A consciência só precisa justificar aquilo que ela mesma duvida.
E não seria por acaso que, justamente eu, bondoso e correto, recorrentemente me encontro enredado em teias lamacentas de intrigas e recalques. A vítima preferida dos ataques venenosos, o ser encantado e perseguido pelas bruxas mais maldosas que a fantasia concebeu.
Onde está o meu condão que não me ajuda a, num passe de mágica, solucionar os grandes enigmas e sair dos grandes buracos que os outros cavaram para mim?
Eu sou a minha própria esfinge: Traço minha charada e, por não ter a resposta, me devoro, porque me consumo em estratagemas bem feitos para culpar o mundo, a prefeitura, Deus e os viventes. Ai de mim se não fossem os viventes… A quem eu culparia?
Logo eu, tão certinho e tão perfeito, que não vejo o ponto mais cego de minha alma, muitas vezes mais corriqueira e difamável que a prostituta mais barata da ladeira.
Quem me difama não são minhas palavras nem as pessoas, mas a vida que construí para mim e em cuja rede eu me debato achando que você me trapaceou e me traiu perversamente. Essa é a imagem concreta do que sou, exposta fora de mim; é o meu retrato incontestável.
Sou eu quem me deflagro na minha pobreza, no meu prejuízo, na minha defesa constante e na facilidade que tenho em lhe assinalar os erros e tiranizar você por não ser perfeito como eu.
Vida perfeita é para os perfeitos. Ou poderemos dizer que só os olhos perfeitos reconhecem o acerto das coisas na feiúra e na queda, assim como na doença e na penúria. São estes olhos que conseguem enxergar sentido nas esquinas vis, porque entendem que a totalidade não se faz de uma metade negada, mas das peças que a vida escancara ou esfrega nos narizes de tantos quantos lhe neguem a verdade mais simples: “Eu sou o que sou e como ajo” – já dizia Jung, nem mais e nem menos.
Assim, enquanto digladio, buscando culpados para aliviar minha insipiência infantil e minha fajuta infalibilidade, o mundo me sacoleja com solavancos tão maiores quanto a minha negação sobre quem ainda sou. Se eu não fosse isso que sou, minha vida não seria isso que ela é!
O guarda-chuva de suas defesas não fará jus à tempestade de meus impropérios, assim como seus pacientes argumentos não irão decompor a jaça que projeto em você, pois não a aceito em mim, em nenhuma hipótese. Um dia, por certo, me depararei com o isolamento e com a solidão e não haverá mais ninguém a quem culpar a não ser a lápide mal escrita na Quinta dos Lázaros.
Se os fatos deflagram o ponto final nessa retórica tão repetitiva, diante da incomensurabilidade do não sabido e do porvir incerto, apenas poderemos dispor de reticências. Jamais saberemos as novas faces dos dragões que dormitam abaixo dessa superfície até que eles despertem. Se quero gastar minha vida tentando ter razão, certamente a existência me gastará na ilusão do ouro dos tolos e serei mal pago desde sempre. E eu serei, ao final, o mártir dos mártires, o justo dentre os justos, desfalecido na batalha, porém sem largar a lança das minhas acusações, voltada para os vivos, em riste.